Giane Lima Nepomuceno
Universidade Federal de Lavras – 3rlab
Paralelamente a outros mercados, nos últimos anos, o setor suinícola no Brasil expandiu-se de forma bastante significativa ocorrendo melhorias dos parâmetros de desempenho produtivo dos animais. Contrapondo-se a esse panorama, problemas relacionados à qualidade da carne, exercem influência no poder de compra deste produto no mercado. Com isso, as pesquisas das propriedades tecnológicas da carne tornam-se cada vez mais imprescindível, uma vez que se respalda mais em testes físicos, químicos e sensoriais, do que em julgamentos pessoais. Dentre as características mais importantes destacam-se a qualidade química, mediante aos estudos dos percentuais de proteína, lipídios, colesterol e ácidos graxos; a física, com destaque para os parâmetros do pH, perda de peso por cocção, capacidade de retenção de água, força de cisalhamento e a qualidade sensorial que avalia o sabor, aroma, cor, suculência, textura entre outros aspectos.
Após o abate, com a interrupção do suprimento sanguíneo e do fornecimento de oxigênio ao tecido muscular, inicia-se a transformação do músculo em carne. A ausência de oxigênio nas células musculares desencadeia processos bioquímicos, para obtenção de energia, ligados ao metabolismo anaeróbio, na tentativa de manter a sobrevivência das células. Ocorre então o consumo das reservas de glicogênio (glicólise anaeróbia) e consequente formação de ácido láctico, acarretando a queda do pH, que representa o principal determinante da qualidade final da carne. Esses processos bioquímicos e físico-químicos do período post-mortem constituem a apoio para todas as avaliações objetivas e subjetivas possíveis de serem efetuadas no frigorífico e determinam as características tecnológicas e sensoriais da carne. Durante essas transformações, alguns desvios podem ocorrer em função de causas multifatoriais, desencadeando a formação de defeitos de qualidade.
Os dois principais defeitos de qualidade na carne suína, conhecidos como PSE – do inglês pale, soft and exudative (carne pálida, flácida e exsudativa) e DFD – de dark, firm and dry (escura, firme e seca), (figura – 1) já foram e ainda têm sido amplamente estudados, sendo suas causas e consequências muito debatidas nos principais países produtores.
Figura 1- Defeito de qualidade PSE (carne, pálida, flácida e exsudativa), normal e DFD (escura, firme e seca).
A queda do pH tem consequências importantes para as proteínas da carne, as quais levam diretamente à formação da cor final e da CRA. Conforme o pH diminui, as proteínas atingem seu ponto isoelétrico e, com isso, a água intimamente associada às proteínas é separada dessas moléculas devido a anulação das cargas elétricas que as mantinham ligadas. A própria acidificação do músculo, com a carcaça ainda quente, provoca a desnaturação de proteínas que se insolubilizam e se precipitam, formando uma massa mais densa dentro das células. Além disso, a contração muscular produzida no rigor-mortis e a ligação pH-dependente da actina à miosina, diminui o espaço entre as miofibrilas e expulsa grande parte da água existente no interior da treliça de miofilamentos para o sarcoplasma (citoplasma da célula muscular), diminuindo o volume ocupado pelas proteínas e aumentando o volume sarcoplasmático e de água entre as células. Todos esses fenômenos contribuem para a perda de líquido da carne durante o corte, armazenamento, processamento e preparo, sendo que na carne PSE esses efeitos estão todos exacerbados, levando a maiores perdas.
A cor da carne é determinada pela concentração dos pigmentos mioglobina e hemoglobina (que conferem a cor característica de carne), pelo conteúdo de gordura intramuscular, pelo estado químico e pelas propriedades estruturais do músculo (integridade e organização das proteínas musculares) dependentes do pH. As três últimas afetam a reflexão da luz que incide sobre a carne. A contração das fibras musculares, a diminuição do volume ocupado pelos miofilamentos e também à precipitação de algumas proteínas, anteriormente solúveis dentro das células, aumentam a dispersão e reflexão da luz pela carne, conferindo-lhe aparência mais pálida, o que é claramente evidenciado nas carnes PSE e, contrariamente, não observado nas DFD, que acabam absorvendo mais a luz incidente. Ainda, a diminuição na transmissão de luz através do músculo em amostras PSE dificulta a função dos pigmentos que dão cor característica às carnes.
Outras variáveis independentes, mas que interagem, podem também influenciar a cor da carne. O manejo animal e o regime de alimentação empregado podem interferir na cor inicial tanto quanto as condições de pré-abate, que podem induzir os animais ao estresse. Todo o processamento, taxa de resfriamento, temperatura e tempo de estocagem resfriada ou congelada também afetam a estabilidade da cor. Nas gôndolas de exposição dos produtos prontos para venda, as principais variáveis que interferem na estabilidade da cor são a temperatura e atmosfera na qual o produto está embalado.
Com relação aos fatores determinantes de problemas de qualidade, sabe-se, por exemplo, que o manejo pré-abate é fator extremamente crítico na incidência de alterações. Inúmeras atividades podem interferir mais ou menos intensamente, como: a forma como os animais são conduzidos e carregados no caminhão, o tempo de jejum pré-abate, a distância percorrida ou o tempo de viagem, a temperatura e umidade ambientes durante o trajeto, a densidade de transporte, a ventilação, o desenho da carroceria, o potencial de adaptação dos animais às condições de transporte e ao contato com o manejador, a forma e o tempo gasto no descarregamento, o tempo de descanso, o método de insensibilização e outros (figura 2). De maneira geral, o importante é que o animal sofra o mínimo de estresse possível e que todo esse manejo desenvolva-se obedecendo ao máximo o comportamento natural do suíno. Portanto, para que esse objetivo seja alcançado, torna-se preponderante o treinamento do pessoal envolvido no contato com os animais, fazendo-o concluir que, trabalhando dessa forma, as dificuldades no manejo (que é sua própria atividade diária) certamente diminuirão e, com elas, os problemas de qualidade na carne.
Figura 2- Simulação da queda do pH da carne ao longo das horas depois do abate.
A genética constitui outro fator de muita preocupação quanto à incidência de defeitos de qualidade, em especial de PSE. Há poucos anos, a seleção para carcaças mais pesadas e de melhor rendimento de carne magra evidenciou o aparecimento de linhagens mais susceptíveis ao estresse, principalmente as portadoras do gene halotano (Haln), muito presente nos animais da raça Pietrain, uma entre as de maior potencial de rendimento. Outro gene, o RN (Rendimento de Napoli), está relacionado ao defeito conhecido como “carne ácida” (efeito Hampshire), caracterizada principalmente por pH final baixo, apesar da velocidade normal de queda do pH. Ocorre devido a um maior conteúdo de glicogênio muscular nos animais portadores desse gene.
Hoje em dia, as empresas de melhoramento genético buscam controlar de forma eficiente os problemas citados, considerando a questão da susceptibilidade ao estresse junto com características de qualidade de carcaça e de carne, como rendimento de carne magra e porcentagem de gordura intramuscular, por exemplo, em seus programas de melhoramento, visando ofertar aos produtores linhagens mais dóceis para manejar, com bons índices de produtividade e produção de carne magra. Dessa forma, atendem também às necessidades da indústria. Em alguns países, como na Dinamarca, o gene halotano foi totalmente eliminado da genética dos animais atualmente criados.